sexta-feira, 5 de maio de 2017

O evangelho segundo Jesus Cristo

Fazia um bom tempo que não lia Saramago e, ao iniciar este livro, lembrei o que me fez desistir de lê-lo na primeira vez: períodos longos. Tão longos que me faziam esquecer o começo e terminava relendo a mesma coisa algumas vezes para absorver. Mas após alguns capítulos, logo o costume voltou e pude aproveitar a leitura. Este livro é provavelmente uma das obras mais conhecidas de José Saramago, ao lado de Ensaio sobre a Cegueira, porém bem mais polêmico. No entanto, isso não é culpa do autor, Jesus Cristo, sua vida, concepção e morte, sempre foram alvos de polêmicas quando a história desvia um pouco da Bíblia.

Eu gostei muito deste livro. Apesar de já saber desde o começo o que vai acontecer, ele conseguiu me surpreender em quase tudo. Saramago é um ateu declarado, ele não precisa se ater a imagem sagrada que normalmente as pessoas buscam quando falam de Jesus. Com isso, o livro mostra um Jesus muito mais humano, mas ainda assim O Cristo. Este é definitivamente um livro com o estilo de Saramago, algo que gosto de chamar de realismo fantástico, coisas estranhas e fantásticas acontecem (os milagres, Deus e o diabo), mas este não é o foco da história. O evangelho segundo Jesus Cristo é um livro sobre dois personagens em 3 partes bem definidas.

A primeira parte tem o foco em José e como ele vai influenciar decisões futuras do filho, pois ele herdará o pecado do pai. A segunda parte é após a morte de José, quando Jesus herda a túnica e as sandálias do pai, mas também herda seus pesadelos e descobre o pecado que fez seu pai cometer ainda na infância. Eventualmente, um misterioso pastor que esteve envolvido na sua infância adota o adolescente em seu rebanho. Por anos, este pastor ensina seu ofício a Jesus. Alguns anos mais tarde, Deus finalmente se faz presente e diz a Jesus o seu destino, do qual ele não pode escapar, dando início a terceira e última parte. Jesus sai pelo mundo pregando a palavra do Senhor e promovendo milagres, mas não isento de conflitos.

Claro que aqui a história está bem resumida, mas é possível notar que quando resumimos, não há muitas diferenças da versão bíblica. É apenas quando observamos os detalhes que a história introduz suas polêmicas. Alguns spoilers polêmicos esperados são: Maria de Magdala é amante de Jesus, Judas estava destinado a trair Jesus e o faz em obediência a ele, o pastor que influenciou a vida de Jesus desde o nascimento era na verdade o diabo, a mãe e os irmãos de Jesus não acreditaram nele quando ele se anunciou o Cristo e, por fim, Deus é mostrado como alguém que está a apresentar um plano de metas, sem se importar que este plano envolva o sacrifício de seu filho. O próprio Deus não tem toda a certeza de que Jesus é seu filho, o que ele nos dá é apenas um 'misturei minha semente na de José, então você provavelmente é meu filho'.

Quando ignoramos os aspectos da fé e da história, o que temos é um brilhante romance sobre sacrifício, culpa, religião e ironia. Saramago consegue mostrar diversas parábolas bíblicas de forma despretensiosa, sem exageros, mas com os mesmos milagres. É encantador o Jesus mais humano apresentado por Saramago. Um Jesus recheado de anseios, medos, necessidades e dúvidas, alguém que cresce até aceitar seu destino como cordeiro de Deus e que sempre teve empatia pelo próximo. Quando descobre que muitas pessoas morrerão por sua causa, Jesus faz questão de ouvir uma ladainha descrevendo a morte de todos os santos mesmo quando Deus tenta resumir a lista diversas vezes.

Por fim, apesar de ser um livro denso, o evangelho segundo Jesus Cristo é uma excelente obra de Saramago, mas deve ser lida de coração aberto. Este não é um livro católico ou ateu. É apenas um romance sobre um homem que viveu num período e local onde a fé era tudo e que morreu vítima de seu destino.